O DIA EM QUE BOLSONARISTAS DESCOBRIRAM OS DIREITOS HUMANOS

Cristian Gamba[1]

Jorge Serejo[2]

“(…) estive na prisão e fostes me visitar”
Mateus 25:36

“O erro da ditadura foi torturar e não matar”, disse certa vez, dentre tantas outras gravidades, aquele que viria a ser o pior presidente da história republicana do Brasil pós-88. É quase inacreditável pensar que o Brasil, 38 anos após o fim da ditadura, tenha vivido o terror de ser governado por alguém que usou o mandato conferido pelo povo para promover o ódio, disseminar desinformação e cometer um rol crimes de genocídio e contra a humanidade, ao mais absoluto arrepio da Constituição e dos tratados internacionais de direito humanos de que o Brasil é signatário.

Bolsonaro encarna antes tudo uma visão de mundo, todos sabemos. Uma visão que estreita a noção de democracia e que rebaixa qualquer freio civilizatório, a começar pela naturalização da violência e da barbárie tão amplamente difundida em suas narrativas deletérias. Esperava-se que o cargo de mandatário da Nação imporia certo decoro ao titular; ao contrário, sua emergência constituiu o coroamento de um projeto de extermínio que não inicia nem se encerra com a ditadura civil-militar de 64, mas que atravessa os tempos carregando o cheiro de morte e destruição.

Não se pode dizer, nesse sentido, que seu governo tenha traído as bases que sustentam a visão de mundo dos que o elegeram e que o mantiveram 27 anos como deputado federal. Essa mesma base que, inflamada pelo manifesto descrédito que Bolsonaro possui pelas instituições democráticas, foi capaz de atacar o coração dos três poderes em janeiro de 2023.

Ocorre que o mundo, como dizem os antigos, dá volta; e, como dizem os mais novos, capota. Seja como for, a base bolsonarista mais radical teve de se haver com a força policial do Estado após uma inflexão política e jurídica em represália aos atos terroristas que cometeu. Os dias que se seguiram a 8 de janeiro foram dias em que estes fascistas brasileiros descobriram que direitos humanos existem e que suas premissas são válidas para todos os humanos, inclusive para criminosos, como eles.

É curioso notar que os mesmos que agora clamam por direitos humanos, por condições dignas no cárcere, por assistência jurídica gratuita, dentre outros direitos oriundos do Estado democrático, sejam os mesmos que carregam cartazes e montam acampamentos pleiteando intervenção militar e, ao fazer isso, defendem e normalizam a prática da tortura. Isso acontece porque a violência de Estado, tão justificada e defendida por esses grupos, corporificada a partir da política de encarceramento em massa, da letalidade policial e da manutenção do terrorismo de Estado ao nível de normalidade institucional, sempre foi uma política para os “outros”, ou seja, a população pobre, negra, indígena e quilombola, cujo passado escravista deixou como herança uma estratificação racial que os concebe como objetos de exploração, vidas não enlutáveis, descaracterizadas da condição de humanidade.

Assim, a violência de Estado apenas é aceitável quando praticada contra aqueles vistos como descartáveis, mas a partir do momento em que a bolha é furada e a opressão estatal se volta contra os que a defendem, como ocorrido após os episódios de 8 de janeiro, o que se percebe é a rápida apropriação do discurso de defesa dos direitos humanos.

Podemos dizer, então, que a crítica contumaz ao discurso de defesa dos direitos humanos não seria em relação à sua substância, mas sim em relação aos seus destinatários? Seriam então alguns mais humanos que outros? Seriam alguns dignos de direitos enquanto a outros apenas resta a invisibilidade e o sofrimento? São perguntas retóricas, cuja própria organização desigual da sociedade brasileira trata de responder cotidianamente. A institucionalização e a banalização da violência, a consolidação de uma ordem jurídica ilícita informalmente aceita e o monopólio do Estado sobre a vida e a morte de vastos segmentos da população são marcas de uma sociedade que normalizou o uso da violência de estado como mecanismo de reprodução das próprias desigualdades que historicamente construiu.  

Em sua trajetória milenar, a afirmação histórica dos direitos humanos caracteriza-se como uma racionalidade da resistência. É interessante pensar assim, mais que qualquer perspectiva imanentista sobre o conceito de direitos humanos, porque a visão complexa de que direitos humanos se radicam na história da humanidade por lutas emancipatórias em torno da defesa da dignidade dos povos – e também dos demais seres não humanos, a considerar que a nossa espécie mantém uma relação de integração e não de dominação sobre a natureza – aponta para uma dimensão prospectiva segundo a qual, diante das violências, sejam elas macro ou microagressões, sempre haverá alguém disposto a enfrentar estas visões de mundo que acomodam racionalidades de opressão.

Descobriam, inclusive, eles, que se reivindicam cristãos e defensores dos valores morais que reputam serem os mais caros à sociedade, que existe um Jesus Cristo histórico, por muitos considerado o primeiro grande defensor dos direitos humanos, que sofreu duras penas em silêncio por ter se erguido contra as arbitrariedades do seu tempo, legando para o Ocidente uma ética de incontestável valor para a defesa das minorias sociais.

Para que pessoas não sejam reduzidas a objetos dos desejos dos outros, a humanidade erigiu parâmetros que servem indistintamente a todas e a todos no contexto da resistência a instrumentos de opressão, mesmo àqueles que os defendem abertamente. Foi assim que por ocasião da prisão, os mais de 1500 fanáticos que atacaram despudoradamente a democracia no Brasil, reivindicaram gramáticas dos direitos humanos como garantias de acesso à justiça, devido processo legal, desnecessidade do uso de algemas, uso moderado da força policial, respeito às especificidades da prisão etc. 

Foram além. Puderam descobrir que o país é regido por Constituição democrática e por lei de execução penal, que asseguram, ao lado de mecanismos internacionais como as Regras de Mandela e de Bangkok, que pessoas privadas de liberdade têm direito à vida; à integridade física e corporal; à saúde; à assistência material e espiritual; à assistência jurídica; a instalações adequadas, à individualização da pena; a uma audiência seguida da prisão em que podem relatar à autoridade judicial eventual abuso de autoridade e crimes de tortura e maus tratos.

Nesse contexto, é-lhes conveniente defender os direitos humanos, ante o temor de se defrontar com o estado de coisas inconstitucional que tanto defendem para os outros no ambiente carcerário. Igualmente, nesse contexto, o bandido bom não pode ser assassinado dentro ou fora do cárcere, afinal, mesmo cientes dos atos terroristas cometidos, na qualidade de “bons bandidos”, as palavras de ordem vêm a ser a legalidade e a justiça.

Entre 2019 e julho de 2022, dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) evidenciam que houve pelo menos 44,2 mil denúncias sobre tortura e maus tratos feitas no momento da detenção relatados em audiência de custódia, o dobro se considerados os 4 anos antecedentes[3].  Apenas no ano passado, relatos de tortura em presídios no Brasil aumentaram 37%, segundo levantamento da Pastoral Carcerária.

Do total de 369 denúncias entre 2021 e 2022, o relatório Vozes e dados da tortura em tempos de encarceramento em massa[4], 52,2% dizem respeito a à agressão física, tais como socos, tapas, chutes, tiros, pauladas; 18,38% de agressão verbal, tais como xingamentos e humilhações; 1,73% discriminação em razão da raça/cor, etnia, identidade de gênero ou orientação sexual; 36,32% de uso de tratamento degradante, como manter pessoas encarceradas sentadas no chão debaixo de sol quente, privação de banho de sol por dias por meses etc.

Além disso, o relatório aponta no número 30,1% violação de direitos de familiares, como negação do direito de visita, negação do direito de envio de itens básicos de sobrevivência, negação do direito de envio de cartas; 1,34% violência sexual praticada por policiais penal; 2,24% revistas vexatórias; 13,9% uso de arma de fogo, spray de pimenta, bomba de gás lacrimogêneo, bomba de efeito moral, bala de borracha ou outras ferramentas de tortura, como cassetete, cabo de vassoura, sacola de plástico para sufocamento, fio, toalha molhada etc. 55,1% falta de alimentação salubre, de água potável e ausência de itens básicos de higiene; 47,53% de falta de medicamentos, de procedimento cirúrgicos necessários; 9,41% de falta de assistência jurídica.

Dados da Unidade de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Tribunal de Justiça do Maranhão (UMF) apontam que entre os meses de fevereiro e dezembro de 2021 foram identificadas 454 notícias de tortura em audiências de custódia em todo o Estado do Maranhão. Além disso, dados fornecidos à Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH) pela Corregedoria do Sistema Estadual de Segurança Pública, apontam que foram instaurados 96 procedimentos administrativos para apuração de ocorrência de tortura envolvendo Policiais Militares entre os anos de 2015 e 2021, sendo que o Estado conta com aproximadamente mil policiais investigados anualmente em virtudes de diversas ocorrências (abuso de autoridade, agressão, ameaça, apropriação indébita, extorsão, invasão de domicílio, dentre outras).

Todos esses dados evidenciam que a tortura segue sendo, recorrentemente, utilizada como prática pelas instituições policiais brasileiras. Ela ocorre dentro e fora dos presídios e, na maioria das vezes, desacompanhada de investigações profundas e responsabilizações adequadas. Pelo contrário, sua prática é institucionalmente invisibilizada, principalmente a partir do não fornecimento de dados concretos e organizados, da não tipificação dos delitos no âmbito da Lei 9.455/1997 (define os crimes de tortura), ou mesmo da aceitação de excludentes de responsabilidade baseadas em meras alegações policiais, como é o caso das abordagens justificadas por “atitude suspeita” ou mesmo dos atos praticados em supostos confrontos com a polícia. 

Esse cenário evidencia a manutenção de uma estrutura estatal, envolvendo tanto a segurança pública quanto instituições do sistema de justiça. Tal fenômeno não é novo tampouco inesperado, principalmente se considerarmos que vivemos em um país cuja ascensão da democracia não foi acompanhada por uma ruptura total e completa com os resquícios da ditadura militar que se encontram presentes nas práticas policiais, na legislação e, principalmente, no imaginário popular.

A anistia de torturadores, a não publicização de diversos crimes e violências ocorridas no período, bem como a manutenção do modelo militarizado de polícia no bojo da Constituição de 1988, cujos lemas centrais são o desenvolvimento de uma política de segurança pautada na lógica da guerra e na eliminação do inimigo, são fenômenos que contribuem diretamente para manutenção de uma sociedade que legitima a tortura e naturaliza a violência de Estado.

Por mais controverso que pareça, a apropriação do discurso crítico ao sistema punitivo por parte de parcelas da sociedade que, historicamente, silenciam ou mesmo legitimam a manutenção da violência parece gerar para os movimentos sociais um momento propício para a discussão de pautas que estabeleçam a reforma do sistema de justiça criminal brasileiro.

Por mais que nossos instintos vingativos, aguçados pelos quatros anos do governo Bolsonaro, possam ser tentados a se eriçar com o sofrimento e a criminalização daqueles que atentaram contra a democracia, devemos lembrar que também eles são merecedores de condições dignas no cárcere, e que as mesmas violências seguem afetando, em escala e proporção maiores – e muito menos publicizadas – aquelas parcelas pobres da população brasileira que tanto batalhamos para que sejam ouvidas.

É preciso que se construa uma discussão séria e democrática sobre a superação das práticas estatais violentas. Isso só será possível a partir da participação popular na construção das políticas penais e na discussão essencial sobre o papel que o sistema criminal ocupa na reprodução das desigualdades históricas de nosso país. Além disso, estamos diante da possibilidade histórica de converter em tabu qualquer apologia à ditadura e a torturadores, criando réguas mais elevadas para a política, no sentido de impedirmos, efetivamente, que figuras que ostentam plataformas odiosas e antidemocráticas como as de Bolsonaro sequer tenham legitimidade para voltar a ocupar e dirigir os espaços de poder.


[1] Doutorando em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Brasília e Mestre em Direito pela UFMA. Pesquisador e advogado da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos.

[2] Mestre em Direito pela UFMA, professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e do Centro Universitário UNDB, pesquisador e advogado da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH).

[3] https://www.conjur.com.br/2022-ago-03/34-anos-depois-aprovacao-fim-tortura-casos-dobram-pais#:~:text=Nos%20tr%C3%AAs%20anos%20anteriores%20%E2%80%94%20entre,tortura%20e%2Fou%20maus%20tratos.

[4] https://static.poder360.com.br/2023/01/pastoral-carceraria-tortura-nos-presidios-18jan-2023.pdf

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