SMDH Alerta Sobre os Riscos da Decisão do TJ-MA e OAB/MA em Relação à COECV e Seus Impactos nos Direitos Humanos
Na seção “Fala DH”, trazemos um artigo de opinião que analisa a recente declaração de inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 10.246/2015, que criou a Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade (COECV) pelo Tribunal de Justiça do Maranhão. A SMDH entende que essa decisão pode representar um retrocesso significativo na proteção dos direitos humanos de povos e comunidades tradicionais, fundamentais em um estado marcado por conflitos agrários. Confira a seguir o artigo na íntegra.
OAB/MA E TRIBUNAL DE JUSTIÇA CONTRA COECV
A declaração de inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 10.246/2015, que criou a Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade (COECV), pelo Tribunal de Justiça do Maranhão pode significar graves retrocessos na garantia dos direitos humanos de povos e comunidades tradicionais, assim como de outras coletividades no contexto das conflitos por terra e território no Maranhão. A declaração se deu no âmbito da ação ajuizada pela OAB/MA (processo nº 0800260-59.2021.8.10.0000).
O Estado do Maranhão foi o primeiro e único da federação a criar um mecanismo que reúne duas distintas atribuições fundamentais num Estado do país que não consegue sair dos três primeiros lugares do ranking nacional de conflitos agrários, quais sejam: prevenção e mediação de conflitos fundiários com a observância de recomendações nacionais previstas na Convenção 169 da OIT, da Lei Federal nº 8629/1993, dos Decretos Federais nº 4.887/2003 e 6.040/2007 e da Lei Estadual nº 9.169/2010. Registre-se que no âmbito da prevenção, a COECV aprovou o I Plano Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade, único no Brasil, construído e aprovado com participação da sociedade civil, que tem agora a tarefa política de monitorá-lo, cobrando o seu cumprimento.
Na ação da OAB-MA[1] foi questionada a atribuição da mediação de conflitos numa fase em que já há decisão judicial pelo despejo forçado. De particular o §1º do artigo 1º, da Lei 10.246/2015, diz: “A COECV deverá ser cientificada, de imediato, pela Secretaria de Estado da Segurança Pública de todas as requisições judiciais para cumprimento de mandados de reintegração/manutenção de posse, devendo manifestar-se sobre o Estudo de Situação elaborado pela Polícia Militar”[2]. Importante registrar que a mediação de conflitos nesse momento é fundamental para evitar toda sorte de violações aos direitos humanos de quem poderá sofrer despejo forçado. Esse é o papel e o lugar ocupado pela COECV: fazer as últimas tentativas de mediação para garantir ambiência de respeito aos direitos humanos de todas as pessoas implicadas nos processos. Caso não se efetive a mediação, monitorar a observância das normas legais no contexto de cumprimento de despejos forçados.
No julgamento perante o TJ/MA, o voto vencedor considerou que o cumprimento de decisões judiciais não pode ser condicionado à comunicação feita à Comissão de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade (COECV), órgão do Executivo estadual criado pela lei. Em outras palavras, os desembargadores por maioria rejeitaram a função de mediação antes da execução das medidas de despejo contra pessoas vulnerabilizadas. Sim, porque na grande maioria das situações envolvendo despejo rural estamos tratando de posseiros, povoados, inclusive comunidades tradicionais, a exemplo dos quilombolas.
O julgamento casou perplexidade por seus próprios fundamentos, visto que o próprio Código de Processo Civil incentiva a aplicação de métodos alternativos de resolução dos conflitos[3]. Por outro lado, desde a Resolução nº 510/2023, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) regulamentou as comissões de soluções fundiárias. A referida resolução estabeleceu diretrizes para a mediação de conflitos e para a regularização fundiária e ainda estabeleceu que os planos de ação para cumprimento pacífico das ordens de desocupação devem considerar as vulnerabilidades sociais das pessoas afetadas. O próprio TJ/MA dispõe de uma Comissão de Soluções Fundiárias, atuando muitas vezes em parceria com a COECV. Ou seja, o julgamento contradiz uma prática já consolidada de mediação de conflitos instaurada dentro do próprio Tribunal.
Fora isso, o Brasil é signatário de vários instrumentos internacionais que firmam sua obrigação de se abster e proteger grupos vulneráveis contra despejos forçados, incluindo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (art. 11, parágrafo 1), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 17, 23 e 27), a Convenção sobre os Direitos da Criança (art. 27, parágrafo 3), as disposições de não discriminação encontradas no artigo 14, parágrafo 2 (h), da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e o artigo 5 (e) da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial[4].
Na sua resolução 1993/77, a Comissão de Direitos Humanos da ONU declarou que a “prática de despejo forçado constitui uma violação grave dos direitos humanos, em particular do direito à habitação adequada”.
Nesse caso, é preciso lembrar dos padrões de direitos humanos registrados na Resolução nº 10/2018 do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) – que trata da garantia dos direitos humanos e medidas preventivas em situações de conflitos fundiários coletivos rurais e urbanos: é essencial para que se evitem graves violações a populações vulnerabilizadas. Sua aplicação é inclusive indicada pela Recomendação nº 90/2021, do Conselho Nacional de Justiça. Na mesma esteira seguiu o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos do Maranhão, que já publicou resoluções nesse sentido, abrangendo povos e comunidades tradicionais.
De agosto de 2015 aos dias atuais, a Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade (COECV), tem cumprido esse papel, ou seja, tem exercido essa importante atribuição, mas não sem resistência de todos aqueles agentes e instituições que não compreendem que os direitos humanos devem ter prevalência sobre todos os outros direitos. É disso que se trata quando se analisa a decisão do Tribunal de Justiça do Maranhão.
É inegável que após o trabalho da COECV os despejos no estado diminuíram e ainda diminuiu o caráter violento do cumprimento das decisões judiciais sem observância dos direitos de quem era despejado forçosamente. É possível também afirmar que, respeitados os seus limites legais, a COECV sempre esteve num lugar de respeito às garantias legais dos envolvidos nos conflitos, desse espaço resultando em decisões que também beneficiaram proprietários, fazendeiros e empreendedores, porque a ninguém interessa o conflito interminável e crônico a que muitas vezes não socorre o efeito prático de uma decisão judicial.
Pelo exposto, e na condição de organização que contribuiu inclusive na discussão da minuta da Lei que criou esta Comissão Estadual, a SMDH considera a criação da COECV uma conquista histórica fundamental para reduzir gradativamente a violência no campo. Sua pertinência no ordenamento jurídico do Estado está em par de igualdade com a Comissão de Soluções Fundiárias do Tribunal de Justiça do Maranhão.
Ela não é a solução para a violência no campo e na cidade; é, com certeza, parte do que poderia ser chamada de solução. A sua criação e funcionamento fazem parte das medidas necessárias para que o Estado do Maranhão, como expressão do Estado brasileiro, busque cumprir efetivamente sua obrigação constitucional, que é a de realizar os direitos humanos no campo e na cidade.
Para isso, é fundamental garantir não só as condições de existência desses mecanismos, mas realizar todas as outras medidas estruturalmente necessárias, como revogar a Lei de Terras de nº 12.169/2023, fazer a reforma agrária e a promover a regularização fundiária, enfrentar todas as distintas formas de violência no campo e na cidade, como a concentração da terra, a grilagem e o assassinato de defensores/as de direitos humanos.
O Tribunal de Justiça do Maranhão, como representação do Poder Judiciário no Estado, nessa medida, deve atuar para criar e ampliar mecanismos de proteção aos direitos humanos daqueles/as que recorrem ao sistema de justiça, e não para o agravamento dos conflitos fundiários, ressuscitando um ciclo de violência fundiária inscrito na memória de todos nós e que precisa ser superado.
[1] Nesse caso a OAB/MA atuou contra normas de direitos humanos e assumiu posição alinhada com os protagonistas da violência fundiária no Estado.
[2] O TJ julgou inconstitucional o disposto no artigo 1º, parágrafo 1º, da Lei Estadual nº 10.246/2015 e, por extensão, o Decreto nº 31.048/2015.
[3] No Capítulo I – Das Normas Fundamentais do Processo Civil encontramos o artigo 3º, que assim dispõe:
“§ 1º É permitida a arbitragem, na forma da lei.
§ 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.
§ 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.”
[4] O Comitê dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais salientou de modo especial as desocupações forçadas e declarou, no seu Comentário Geral nº 4 (1991) sobre o direito a uma habitação adequada, que “os casos de desocupação forçada são prima facie incompatíveis com as disposições do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais e justificáveis apenas em circunstâncias verdadeiramente excepcionais e de acordo com os princípios relevantes do direito internacional” (parágrafo. 18).