Recorde no uso de veneno em pulverização aérea alerta para atuação ineficiente do estado e perigo à população
O Maranhão foi o estado com o maior número de conflitos por terra em 2024, segundo o relatório Conflitos no Campo Brasil 2024, lançado no dia 23 de abril pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Foram registradas 363 ocorrências ao longo do ano, o que coloca o estado no topo do ranking nacional e revela a persistência da violência contra comunidades do campo, das águas e das florestas.
Em todo o país, quase 900 mil pessoas foram envolvidas em conflitos no campo — um aumento de 20% em relação a 2023. Este é o segundo maior número registrado pela CPT desde 1985, ficando atrás apenas dos dados de 2020, no auge da pandemia.
O estado concentrou 23% dos casos de conflitos por terra ocorridos no país, afetando mais de 20 mil famílias. As principais vítimas são comunidades tradicionais — indígenas, quilombolas, ribeirinhas e camponesas — constantemente ameaçadas por grileiros, grandes empreendimentos do agronegócio e madeireiras ilegais.
Além da quantidade de registros, chama atenção a gravidade das ocorrências: ameaças de despejo, destruição de casas e plantações, intimidações e violência física estão entre os principais tipos de ataque. “O Maranhão tem uma histórica concentração fundiária e fragilidade na regularização de territórios coletivos, o que favorece o aumento da violência no campo”, destaca a CPT no relatório.
Violência histórica e concentração de terras sustentam conflitos no campo
Para Roseane Dias, da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), os fatores que explicam a permanência do Maranhão na liderança dos conflitos agrários são históricos e estruturais, e não exclusivos do estado. O primeiro é a violência histórica que marca a formação da sociedade brasileira. “Essa violência estrutural, que está na origem do nosso país, segue atingindo aqueles que vivem nos territórios, muitas vezes com posses centenárias, que protegem suas formas de vida e organização distintas”, afirma.
Outro fator é a concentração da propriedade da terra no Brasil, uma característica que remonta à chegada dos colonizadores. “Nunca conseguimos superar essa marca histórica. A concentração fundiária continua sendo uma das raízes mais profundas da desigualdade no campo”, pontua.
Ela ainda alerta para o compromisso do Estado brasileiro com um projeto que favorece os interesses do capital. “Não é à toa que a violência permanece e que a estrutura da concentração de terras se mantém inabalada. O Estado tem sido cúmplice, ao longo da história, desse modelo excludente.”
Roseane ressalta ainda que, embora o foco seja o Maranhão, esses fatores são comuns a outras regiões do país. “O Maranhão aparece no topo do ranking, mas há outros estados disputando esses mesmos índices de violência. Esses fatores estruturais ajudam a compreender por que seguimos nesse cenário.”
No Maranhão, chama atenção o tipo de violência mais recorrente: a pulverização de agrotóxicos contra comunidades camponesas. Segundo a CPT, essa prática, considerada uma das formas mais crueis de ataque, tem sido usada como instrumento para expulsar famílias de suas terras, envenenando plantações, fontes de água e comprometendo a saúde das populações tradicionais.
O estado registrou 228 conflitos envolvendo agrotóxicos — 68% deles concentrados no Leste Maranhense, região onde a produção de soja cresceu 124% desde o ano 2000, tornando-se a segunda maior produtora do estado. A expansão acelerada da fronteira agrícola coincide com o aumento dos conflitos e com a intensificação do uso de agrotóxicos como instrumento de pressão.
Do total de registros, 198 citam o uso de pulverização aérea, sendo que 20 mencionam especificamente o uso de drones. A maior parte das vítimas são posseiros (166 casos), seguidos por assentados da reforma agrária (30 casos) e comunidades quilombolas (22).
Segundo Roseane Dias, o uso intensivo de agrotóxicos deve ser encarado como uma forma de violência institucionalizada. Essa situação revela a força do capital nas decisões estatais. Muitos agrotóxicos são liberados por agências oficiais, o que evidencia que o próprio Estado é responsável pelo cenário de violência no campo. “À medida que o Estado também não fiscaliza, ele também está contribuindo para o índice alto de conflitos pelo uso de agrotóxicos, porque a impunidade também promove conflito”, afirma.
Um levantamento da InfoAmazônia aponta que o uso de agrotóxicos no Maranhão cresceu 191,5% entre 2013 e 2023. O estado passou a ocupar a quarta posição entre os maiores consumidores da Amazônia Legal e a segunda do Nordeste.
Proibido por 11 anos, o glifosato — agrotóxico mais utilizado no país — foi liberado novamente no Maranhão após decisão da Justiça Federal, que alegou ausência de provas de irregularidades na pulverização aérea. Apesar disso, o produto é vetado em países como México e Alemanha por estar associado a doenças como câncer, depressão, Alzheimer e Parkinson.
Como estratégia de resistência, o município de São Francisco do Brejão (MA) aprovou, em 2022, uma legislação que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos. Em âmbito estadual, tramita um projeto de lei de iniciativa popular para proibir a prática em todo o território maranhense. A campanha está em fase de coleta de assinaturas e precisa reunir 37.497 apoios para ser enviada à Assembleia Legislativa. Atualmente, o Ceará é o único estado brasileiro com uma lei com o mesmo objetivo.
Em nível nacional, o cenário também é preocupante. Em 2024, o Brasil aprovou 663 novos pesticidas, um aumento de 19% em relação ao ano anterior, segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. A nova Lei dos Agrotóxicos (Lei nº 14.785/2023) fortaleceu o poder do próprio ministério no registro desses produtos, esvaziando a atuação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o que evidencia o avanço da influência do agronegócio sobre o Estado.
Enquanto isso, a população e o meio ambiente são diretamente atingidos pela falta de legislação e fiscalização eficientes. 2.506 famílias maranhenses foram vítimas de intoxicação por agrotóxicos, de um total de 17.027 famílias em todo território nacional, conforme relatório da CPT.
Segundo o portal Amazônia Real, com dados da Rede de Agroecologia do Maranhão (Rama) e da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Maranhão (Fetaema), em 2024, foram identificadas 39 comunidades em 17 municípios maranhenses vítimas da chamada guerra química, apresentando diversos problemas de saúde como: feridas, queimaduras, coceiras, tontura, dor de cabeça, falta de ar, entre outros sintomas.
Além dos conflitos por terra e pelo uso de agrotóxicos, apontados pelo relatório da CPT, o Maranhão também registrou outras graves violações em 2024:
O documento também evidencia um crescimento nacional de 32% nos assassinatos em conflitos no campo, totalizando 42 mortes em 2024. Embora não especifique quantas dessas ocorreram no Maranhão, o estado figura entre os que concentram os casos mais violentos.
Ao todo, o Maranhão registrou 420 ocorrências de conflitos no campo, em 2024, somando os casos por terra, água e trabalho escravo. Em meio a esse cenário de retrocessos, violações e omissão estatal, comunidades continuam organizando formas de resistência — por meio de leis municipais, projetos de iniciativa popular e denúncias públicas.
Frente à conivência do Estado com interesses do capital, são essas iniciativas locais que reafirmam a luta pela vida, pela terra e pelo bem viver no campo, compreendendo que a violência que se intensifica no campo brasileiro não é um fenômeno isolado: ela é sintoma de um projeto político que, ao privilegiar o lucro, viola sistematicamente direitos humanos e ambientais.
Roseane Dias conclui que a ausência de políticas como a de regularização fundiária, de desapropriação de terras e de mecanismos efetivos de reconhecimento dos direitos territoriais das comunidades tradicionais contribui para a permanência do Maranhão entre os estados com maior número de conflitos agrários no país. “Criam-se medidas paliativas que apenas mitigam os efeitos da violência, mas não há respostas estruturais que enfrentem as causas profundas. Sem isso, não há como alterar de forma concreta o quadro da violência e dos conflitos no campo maranhense”, finaliza.
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