No meio do caminho tinha Pedrinhas

Por Cristian Gamba e Jorge Serejo
Pesquisadores do Projeto “Fortalecendo o controle popular frente à seletividade penal” (Sociedade Maranhense de Direitos Humanos – SMDH)

Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Carlos Drummond de Andrade

Foi Nelson Mandela quem disse que ninguém seria capaz de conhecer verdadeiramente uma nação até que tenha estado dentro de suas prisões. Voltemos a 2013. Complexo Penitenciário de Pedrinhas, São Luís do Maranhão. Ano em que 45 seres humanos conheceram ali o lado mais sombrio da nação brasileira, pagando com a vida o preço da narrativa que sustenta o que uma década depois o Supremo Tribunal Federal chamaria de “estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário”.

Duas décadas antes o país havia assistido à morte de 111 detentos na Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru; depois, nos anos de 2002 e 2004, 61 detentos foram mortos na Casa de Detenção José Mário Alves da Silva, o Urso Branco, em Rondônia. Mas os eventos ocorridos entre 1 e 9 de outubro de 2013 no Complexo de Pedrinhas foram o ápice de uma série de massacres que tiveram seu início ainda em 2008, marco inicial de tragédias que resultaram no acúmulo de 171 mortes, número praticamente igual ao de mortes ocorridas em Carandiru e Urso Branco juntos. Apenas em 2013, 45 detentos tiveram suas vidas eliminadas no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, Maranhão; no ano seguinte, mais 16 lamentavelmente se somariam à lista. Em sua maioria, mortes jamais devidamente elucidadas e punidas.

Sobreviventes do massacre que assolou a penitenciária de Pedrinhas na noite do dia 9 de outubro relatam que agentes do Grupo de Escolta e Operações Penitenciárias (GEOP) avisaram aos gritos que executariam uma nova “Operação Carandiru”. Afirmam, ainda, que os servidores se posicionaram nas guaritas em volta do presídio para que pudessem alvejar os presos à distância[3].

Citar nominalmente os mortos[4], ao invés de apresentar apenas o numeral que engrossa as matérias jornalísticas e as notas oficiais, ajuda-nos a lembrar, ainda que haja um grande esforço para que isso seja esquecido, que se trata do extermínio de seres humanos. A memória é um recurso inescapável do tempo. Assim como nós outros não detentos, incluindo você que lê este texto, aquelas pessoas eram sujeitos com histórias, queridos por alguém, possuíam projetos de vida, sonhos e expectativas, porém, atravessados pela marca insuperável do sofrimento e da exclusão. Toda sua singularidade foi rompida naquela noite e nas seguintes, quando foram escolhidos como alvo de uma guerra que não escolheram lutar.

É como se a simples rotulação de alguém como “criminoso”, “bandido” ou “preso” e a alocação dessas pessoas em um espaço específico – as prisões – criasse uma zona de exceção dentro do Estado de Direito. Um depósito de indignos, de não-cidadãos, de inimigos que romperam o pacto social e precisam ser combatidos a qualquer custo; aos quais a imputação de todo tipo de violência é justificável e tolerável, nas cisões do mundo que separam bons e maus, amigos e algozes, humanos e bestas, ricos e pobres, brancos e negros, civilizados e bárbaros. Não há interesse em investigar e punir quem os violenta. Direitos fundamentais, transparência, controle social, participação popular e devido processo legal não são princípios aplicáveis às zonas de exceção.

Basta recordar que Elson de Jesus teve sua liberdade retirada em decorrência do auto de reconhecimento de um pneu, em sua borracharia. Jullytt da Paz, por confessar a posse de dois celulares, roubados para sustentar seu vício em crack. Ronald Santos por seis gramas e meia de crack encontrados em um campo de futebol. Fabio Gomes pelo roubo de uma camisa, uma bermuda e um par de tênis. Em comum, todos mortos na chacina. Quase todos identificados como negros, pobres, presumidamente culpados, e seus processos dotados de atecnias[5].

Outro fato liga, ainda, todas essas mortes: a superlotação do Complexo de Pedrinhas, causa maior dos motins que levaram pessoas a terem suas cabeçadas decapitadas em um ambiente controlado pelo Estado. Mas não apenas: relatos de tortura, escassez de alimentos, falta de acesso à água potável e de materiais de higiene.

Tais fatores, desde sempre insustentáveis em si mesmos e violadores de postulados civilizatórios fundamentais, levaram à época a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH) a acionar a Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos, que editou ainda no mesmo ano medidas cautelares em face do Estado Brasileiro, para que adotasse ações necessárias e efetivas visando evitar a perda de vidas e danos à integridade de todas as pessoas privadas de liberdade no Complexo, reduzisse de forma imediata os índices de superlotação e investigasse os fatos que motivaram o acionamento da Corte, com o propósito da não-repetição.

Ao longo da última década, entre idas e vindas de informes e contrainformes, a Corte IDH tem mantido as medidas cautelares e acrescentado determinações em face do Estado Brasileiro[6]. Não temos dúvidas que ante a insuficiência de respostas efetivas do Estado à época, a intervenção da Corte IDH impulsionou a ocorrência de algumas melhorias no sistema carcerário brasileiro e maranhense, como o fim de revistas vexatórias, o fim da superlotação em algumas unidades, as audiências de custódia, e mais recentemente a estratégia do Conselho Nacional de Justiça de começar pelo Maranhão a Central de Regulação de Vagas.

Todavia, sendo a história uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’, não podemos deixar de pontuar nesse balanço de 10 anos do massacre de Pedrinhas, que continuam encontrando os peticionários da ação internacional em suas frequentes inspeções no Complexo graves violações de direitos humanos em variados aspectos, como saúde, assistência, trabalho, execução penal etc. A superlotação é uma realidade admitida pelo próprio Estado. Hoje, por exemplo, a taxa de ocupação da Penitenciária Regional de São Luís é de cerca de 176%, a da UPSL 1 de 121%, UPSL 3 de 158%, UPSL 5 de 148%, UPSL 7, de 103%.

Denúncias de tortura dentro e fora do cárcere sequer podem ser apuradas com independência e transparência, pois, a despeito de existir uma lei que institui o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT) desde 2015, até o presente momento, o instrumento não saiu do papel. Persiste, indefinidamente, a determinação de prisões com base no argumento genérico de “garantia da ordem pública” (último levantamento feito pela SMDH apontou que essa justificativa corresponde a 96,6% dos casos de decretação de prisão preventiva)[7]. Ordem pública, aliás, foi o que manteve preso Ubiraci Pereira Aranha, morto no massacre de Pedrinhas.

Não são poucos aqueles que se indignam com tal situação. Ao longo dos últimos anos, momento no qual a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos incidiu para a construção dos Parâmetros para o Desencarceramento no Estado do Maranhão[8], moradores de bairros das periferias da Ilha, alunos de escolas públicas, integrantes de organizações da sociedade civil, familiares de presos, pesquisadores do campo criminal, povos indígenas e defensores de direitos humanos ameaçados puderam demonstrar a sua indignação com o estado de coisas. Percebemos que existe ali uma vontade de se insurgir contra as injustiças e violências do sistema carcerário. Há uma consciência acerca da seletividade e da injustiça que marcam a política brasileira de segurança pública, utilizada como ferramenta para manutenção de uma sociedade que é – e pretende se manter sendo – desigual.

Esse sentimento, no entanto, caminha lado a lado com a sensação de impotência, de que não existem canais para que suas demandas e aspirações sejam ouvidas, principalmente aquelas que partem dos segmentos mais vulnerabilizados. Foi nesse momento que surgiu uma questão essencial: é preciso articular a insurgência. Como transformar a indignação em um movimento coletivo capaz de trazer o povo para o cerne do debate sobre segurança pública e política carcerária?

Devemos lembrar que o campo da segurança pública tem sido um dos menos permeáveis aos valores democráticos que ainda hoje tentamos solidificar no Brasil. A própria Constituição Federal, um dos principais marcos da transição democrática que completou 35 anos, é permeada por diversas omissões e silêncios que ajudaram a manter intocada grande parte da estrutura autoritária do período ditatorial. O capítulo destinado à segurança pública possui apenas um artigo, se limitando à apresentação das diversas instituições de polícia. Temas como a estruturação militarizada das polícias, a gestão da segurança através da guerra e o processo de encarceramento em massa, bem como os distintos reflexos desses fenômenos, passaram à margem do texto constitucional.

Essa conjuntura decorreu da forte influência exercida pelas Forças Armadas na Assembleia Nacional Constituinte, somada ao pouco interesse e a ausência de propostas alternativas do campo progressista para a área da segurança pública. A própria Constituição carrega consigo uma combinação paradoxal de um forte ímpeto antiautoritário, presente em vários pontos do texto constitucional, com a manutenção de muitos recursos de poder na mão dos militares. Podemos dizer que a transição democrática brasileira jamais significou uma ruptura total e completa com os resquícios da ditadura militar, especialmente quando tratamos do campo da segurança pública.

A omissão constitucional e a consequente manutenção de antigas práticas são desafios centrais para o enfrentamento da violência no Brasil. Nas últimas três ou quatro décadas a sociedade brasileira passou por intensas mudanças, os problemas e demandas relacionados à criminalidade também se alteraram, porém, as instituições encarregadas da proteção de cidadãos (polícia, justiça penal e sistema penitenciário) permaneceram operando segundo modelos antiquados e não democráticos.

Entendemos que a articulação da insurgência faz parte de um movimento necessário de radicalização da democracia, como racionalidade da resistência que se contrapõe à racionalidade da opressão. Radical, pois busca uma participação cada vez maior do povo no processo político. Aqui estamos interessados na construção de uma política que ofereça a diversos segmentos da população a possibilidade de manifestação, consideração e atendimento de suas demandas, principalmente daquelas oriundas das parcelas da população cujo trato estatal as concebe, rotineiramente, apenas como alvo da política de segurança pública.

Nesse ponto, podemos afirmar que se levantou no Maranhão um movimento de contestação dessa ordem, expresso em momentos de intensa discussão sobre a pertinência dos parâmetros coletivamente construídos. Em duas assembleias populares e uma audiência pública mais de 300 pessoas puderam dizer em alto e bom som que não basta o mero controle social exercido pelos conselhos de direitos – embora não desprezemos sua importância. É preciso construir um verdadeiro poder popular. As diversas coletividades de sujeitos subalternizados precisam se articular em rede, se fortalecer reciprocamente para que, assim, possam se constituir como verdadeiros instituintes de práticas jurídicas e direcionadores de políticas públicas. Apenas através do poder popular, com autonomia plena, será possível disputar o direito de dizer como a política brasileira de segurança pública deve ser conduzida.

O Estado não abrirá os canais de diálogo espontaneamente. É preciso que a sociedade civil se articule e forme grupos de pressão para alargar o horizonte em torno da luta por dignidade. Isso envolve não só participar dos espaços estatais e governamentais de negociação, raros no campo da segurança pública, mas também fortalecer os espaços próprios da sociedade civil, reforçando sua independência. O reconhecimento do poder popular e a ampliação dos espaços de participação popular somente será possível se conquistada. As portas da prisão precisam ser abertas para que o povo exerça seu direito democrático de participar da formulação, da execução e do controle da política carcerária.

É assim que poderemos pensar em prisões que não sejam verdadeiras zonas de exceção dentro de um suposto Estado Democrático de Direito, que não sejam ferramentas à disposição da propagação do racismo estrutural e nem movidas pelo intuito de manter uma sociedade desigual.

Como diz um antigo provérbio africano, “até que os leões inventem suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça”. É somente através do movimento popular de resistência, como sempre foi, que poderemos garantir que episódios evidenciadores da descartabilidade das vidas, como os ocorridos em Pedrinhas, não mais se repitam e não mais fiquem no meio do caminho…


[1] Mestre em Direito pela UFMA, professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e do Centro Universitário UNDB, pesquisador e advogado da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH).

[2] Doutorando em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Brasília e Mestre em Direito pela UFMA. Pesquisador e advogado da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH).

[3] https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/01/140114_pedrinhas_presos_jf_dg

[4] Carlos Eduardo Oliveira da Silva, Claudevan Figueiredo Serra, Claumir Marinho Ribeiro, Cosme Damião Sousa, Daniel Fonseca Rodrigues, Diego Costa Silva, Dorgival Nogueira Alves, Durval Oliveira Rodrigues, Elson de Jesus Pereira, Fabio Gomes Lima, Fábio Josias Sousa Dias, Francisco Henrique França Junior, Francisco Marques Viana, Franta Anízio Alves, Genilson Ferreira Costa, Idenilson Gaspar Viegas da Silva, Isaias Silva Ribeiro,  Ismael Monteiro, Jadson Oliveira, Jailson da Silva Viegas, Jairo Barros Moreira, Joarlisson Paulo Neres Ferreira, José Raimundo Pinheiro, Josias Morais da Silva, Josivaldo dos Santos Guterres,  Jullytt da Paz Siqueira Santana, Leonardo Pereira de Souza, Lindeberg Moreira Maranhão, Marcos Aurélio da Silva, Marinaldo de Jesus Gaspar Castro, Natanael de Souza Do Espírito Santo, Paulo Rogério Barbosa Soares, Paulo Sergio Nascimento, Pedro Araújo da Silva, Rafael Lima Melônio, Roberto Costa Ferreira, Rogério Moreira Maranhão, Ronald Santos Ferreira, Silas Santos Mendes, Ubiraci Pereira Aranha, Uvanir Duarte de Farias, Vagner Moreira Maranhão, Wanderson Carlos Rodrigues Leite, Welderson Reis da Cunha, Welson Gomes da Silva (número estimado de presos que foram encontrados mortos em dependências de locais do Complexo de Pedrinhas no ano de 2013.

[5] Informações extraídas do livro Racismo, colonialidade e necropolítica em discursos e práticas criminais: os casos dos mortos de Pedrinhas, de Isabela Miranda, ed. Tirant, 2022.

[6] https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/mc367-13-pt.pdf

https://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/pedrinhas_se_01_por.pdf

https://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/socioeducativa_se_10_por.pdf

https://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/pedrinhas_se_02_por.pdf

https://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/pedrinhas_se_03_por.pdf

https://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/asuntos_unidad_se_02_por.pdf

[7] https://smdh.org.br/wp-content/uploads/2019/12/Relat%C3%B3rio-Final-da-Pesquisa-Audi%C3%AAncias-de-Cust%C3%B3dia.pdf

[8] https://smdh.org.br/wp-content/uploads/2023/06/Parametros-para-o-desencarceramento-no-Estado-do-Maranhao.pdf

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